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Venite adoremus! Uma reflexão sobre a festa de Corpus Christi

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Geraldo Luiz De Mori SJ

“Por isso oferto um sacrifício de louvor, invocando o nome santo do Senhor” (Sl 115,13)

A Igreja católica celebra, na quinta feira depois da oitava de Pentecostes, a festa de Corpus Christi. Algumas pessoas se perguntam sobre as razões dessa festa, uma vez que na Quinta-Feira Santa, início do Tríduo Pascal, já é celebrada solenemente a festa da Eucaristia. A origem dessa festa remonta à Idade Média, a uma “visão” de Santa Juliana de Monte Cornillon, na Bélgica, na qual a lua cheia aparecia com uma mancha escura, que ela interpretou como sendo a marca da ausência de uma festa para o Santíssimo Sacramento. Ela comunicou sua visão ao bispo e a outras pessoas, uma das quais depois se tornou o Papa Urbano IV. Sua corte, localizada em Orvieto, no norte de Roma, era próxima de Bolsena, onde, em 1263 (ou 1264), ao celebrar uma missa, um padre teve dúvidas sobre a “presença real” de Cristo nas espécies, vendo o sangue empapar o corporal. O Papa, movido por esse prodígio e pela petição de vários bispos, instituiu a festa de Corpus Christi, confirmada por seu sucessor e pelo Concílio de Viena, em 1311[1].

Quem estuda a história do sacramento da eucaristia percebe, na introdução dessa festa, uma ruptura com relação à compreensão da Eucaristia predominante no primeiro milênio. Segundo Henri de Lubac, teólogo jesuíta francês que fez um longo estudo sobre essa questão, na sua obra Corpus mysticum, no primeiro milênio a expressão “corpus mysticum” (= corpo místico) era aplicada tanto para designar a Igreja quanto para designar a eucaristia. O teólogo italiano Cesare Giraudo ilustra isso em sua obra Num só corpo. Segundo ele, na oração eucarística há a invocação do Espírito Santo (epiclese) sobre as espécies, para que se tornem o corpo e o sangue de Cristo, e sobre a assembleia celebrante, para que se torne o corpo e o sangue de Cristo no mundo. O dom do corpo e do sangue do Cristo tem como meta transformar quem o recebe em outros Cristos presentes e atuando no mundo, com o mesmo jeito de ser e de agir de seu mestre.

Ainda segundo Henri de Lubac, a ruptura que se deu no segundo milênio, do qual a introdução da festa do Corpus Christi é uma das expressões, é perceptível na mudança ocorrida na forma como a Igreja e a Eucaristia passaram a ser denominadas. A Igreja passou a ser identificada como “corpus mysticum” e a eucaristia como “corpus verum” (= corpo verdadeiro). Um dos significados profundos da Eucaristia, que foi resgatado na Constituição sobre a Divina Liturgia (Sacrosanctum Concilium), do Concílio Vaticano II, é sua relação profunda com a Igreja, expressa pela fórmula “a Igreja faz a Eucaristia e a Eucaristia faz a Igreja”, e bem evidenciada nas duas epicleses da oração eucarística tão bem estudada por Cesare Giraudo. Trata-se, no fundo, de não dissociar o Corpo de Cristo entregue e o corpo eclesial que nasce dele, se alimenta dele e deve, como o dele, ser entregue para alimentar o mundo e saciá-lo com os dons da salvação. A expressão “corpus verum” é o resultado de disputas sobre a “presença real” de Cristo nas espécies. Elas deram origem à teologia da transubstanciação, que tornou a Eucaristia objeto de veneração mais do que alimento para quem precisa ser alimentado na fé para tornar-se o corpo eucarístico de Cristo num mundo que tem fome e sede de justiça e de vida plena.

Uma particularidade da festa de Corpus Christi é que após a celebração, é feita uma procissão, em muitos lugares sobre tapetes confeccionados especialmente para esta ocasião. É a única vez, do ponto de vista litúrgico, que a Eucaristia sai em procissão, ou pelas ruas da cidade, do bairro, ou, de forma mais simples, dentro do próprio recinto em que é celebrada. Essa ênfase na visibilização do Corpo do Senhor que passa pelas ruas, chama à adoração e à veneração. Sem dúvida, ao longo dos séculos e ainda hoje a experiência de contemplar o Corpo do Senhor que passa é motivo de fé e de devoção para grande parte dos fiéis. Para muitos, somente o fato de ver o ostensório no qual se encontra a hóstia consagrada, é motivo de muita consolação, aumento da fé, da esperança e da caridade. Não se pode, sem dúvida alguma, ignorar nem menosprezar os efeitos que essa ostensão do Corpo do Senhor provoca nos fiéis. No entanto, como já era convicção do povo do Antigo Testamento, a fé não nasce da visão, mas da escuta, ou seja, muitas vezes, a contemplação pela visão pode não converter de fato quem viu o que está sendo dado aos olhos para ser visto. As Sagradas Escrituras estão baseadas na convicção de que Deus fala, e que sua voz é a que chama efetivamente à conversão, à fidelidade à aliança. Por isso, uma fé que se baseia somente na visão, mesmo de algo tão sublime como é o Santíssimo Sacramento passando no meio do povo e sendo mostrado aos olhos de quem o contempla, não é uma fé verdadeira. Ela nasce da escuta e deve levar à “obediência”, ou seja, à realização daquilo que Deus fala através de sua Palavra.

Para a maioria das pessoas que participam das celebrações de Corpus Christi, o conhecimento das mudanças que aconteceram com relação à compreensão dos liames entre Igreja e Eucaristia no segundo milênio podem nem ser compreensíveis. Cada um, certamente, tem seu próprio entendimento do que é o Sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor, cada um busca participar à sua maneira e segundo sua leitura das liturgias nas quais as espécies do pão e do vinho se tornam a presença vida do Senhor em suas vidas. Mais que curiosidade histórica ou discussão crítica sobre possíveis desvios na compreensão do significado profundo do sacramento da Eucaristia, a festa de Corpus Christi, para a grande parte dos fiéis católicos, é uma ocasião de contemplar a passagem de seu Senhor por suas ruas, bairros, casas, igrejas. Mas ela é também ocasião de renovar o laço profundo que Jesus quis ter com sua Igreja ao deixar-lhe o Sacramento de sua presença, que também é o sacramento que a alimenta, dando-lhe coragem para enfrentar as dificuldades do cotidiano, mostrando-lhe como continuar reproduzindo os gestos que se encontram na realização mesma do sacramento: dar o próprio corpo por amor a uma humanidade que padece e muitas vezes pede “dá-nos deste pão” (Jo 6,34); dar o sangue para a vida de um mundo que muitas vezes parece ter esquecido que somente gestos de amor capazes de dar-se até a morte fazem a diferença para o mundo.

Um apelo que está profundamente presente na festa de Corpus Christi é o “venite adoremus!”, ou seja, o deixar-se interpelar pelo sacramento no qual Jesus mostra qual o caminho que leva à verdadeira adoração. Sim, o apelo é para adorar as espécies consagradas em ostensão, mas também para descobrir que a verdadeira adoração é voltar-se para aquilo que as espécies dão a ver, a saber, que o dom da vida de Jesus que elas expressam, apontam para a fonte mesma de onde vem a capacidade de dar-se até a última gota de sangue: o Pai, único a ser adorado, pelo Filho, que move os corações, pelo Espírito, para que todo joelho se dobre no céu e na terra em verdadeira adoração.

Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

[1] Ver o breve artigo de André Sampaio, História da solenidade de Corpus Christi, in Vatican News, 03/06/2021. Disponível: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2021-06/historia-da-solenidade-de-corpus-christi.html Acesso: 29/05/2024.

Foto: David Eucaristía por Pixabay

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