Pe. Jaldemir Vitório SJ
Estamos concluindo o tempo litúrgico da Páscoa e, em breve, celebraremos a Solenidade de Pentecostes. Tempo favorável para se refletir sobre um tema transversal da tradição bíblica, perpassando o Antigo e o Novo Testamento: a presença e a ação do Espírito Santo de Deus na Criação e na História.
Quando ainda imperava o caos, o Espírito (ruah) pairava sobre as águas (Gn 1,2); sua força criadora implementou a ordem divina – “faça-se!” – de modo a superar a desordem e fazer surgir o espaço em que os seres humanos – “imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26-27) – viveriam em comunhão entre si e com o Criador. O Espírito se faz presente na vida dos profetas de Israel, dando-lhes força e coragem para levarem adiante a tarefa de proclamar a Palavra de Deus e denunciar as injustiças. O profeta Miqueias declarou: “eu estou cheio do Espírito de Deus, de direito e de coragem, para anunciar a Jacó seu crime e a Israel, seu pecado” (Mq 3,8). Um profeta do pós-exílio narra assim sua vocação: “o Espírito do Senhor Deus está sobre mim, eis porque o Senhor me ungiu e me enviou para anunciar a boa nova aos pobres…” (Is 61,1-2). O Espírito de Deus acompanhava os juízes de Israel, líderes eventuais do povo, como se fala de Otoniel (Jz 3,10), Jefté (Jz 11,29), Gedeão (Jz 34) e Sansão (Jz 14,6). Quando os reis de Israel eram ungidos, o Espírito de Deus os revestia, de forma a cumprirem com fidelidade a tarefa de governar com justiça e misericórdia, como aconteceu com Davi (1Sm 16,13). Quando Moisés impôs as mãos sobre Josué, esse ficou cheio do Espírito de sabedoria, que o capacitou para levar adiante a missão de conduzir o povo que estava a ponto de entrar na Terra Prometida (Dt 34,9). O salmista implora a Deus: “não retires de mim teu Santo Espírito” (Sl 51[50],13), por reconhecer sua incapacidade de andar no bom caminho sem tal ajuda. Numa perspectiva mais ampla, a Bíblia alude à efusão do Espírito de Deus sobre o povo, de modo a motivá-lo a se pautar pela fidelidade ao Deus de sua fé. Deus mesmo promete: “derramarei o meu Espírito sobre toda carne (ser humano) […] até sobre os escravos e sobre as escravas derramarei o meu Espírito” (Jl 3,1-2). O profeta Ezequiel reconhece que o Espírito de Deus fará com que o povo, qual montão de ossos humanos ressequidos, volte a viver como que ressuscitados da “morte” infligida pelos inimigos ao exilá-lo na Babilônia (Ez 37,1-14).
Os evangelhos narram Jesus de Nazaré inteiramente marcado pelo Espírito Santo, desde sua concepção (Mt 1,18.20; Lc 1,35). No batismo, o Espírito, “como uma pomba”, desceu sobre ele (Mc 1,10). O Espírito conduzia-o (Lc 4,1) e o consagrou pela unção para o serviço profético em favor da humanidade carente de cuidado (Lc 4,18-19). O Mestre ensina que o Espírito é fonte de vida (Jo 6,63). Ele mesmo seria o doador do Espírito (Jo 7,39), “Espírito de verdade” (Jo 14,17; 15,26; 16,13), “Espírito Santo paráclito” (Jo 14,26), defensor dos discípulos e das discípulas em tempos de tribulação por causa da fé.
Quando enviou os discípulos em missão, Jesus garantiu-lhes que, nas perseguições, seriam assistidos pelo Espírito Santo: “não sereis vós que falareis, mas o Espírito do vosso Pai é que falará em vós” (Mt 10,20); igualmente, quando fossem submetidos julgamentos iníquos (Mc 13,11; Lc 12,11-12). Cada vez que os discípulos e discípulas suplicam, o Pai do céu concede-lhes seu Espírito Santo (Lc 11,13). O envio em missão supõe o dom do Espírito: “recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22). No decorrer da missão, haveriam de batizar “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19), sinal de compromisso com o Ressuscitado a ser expresso com um estilo de vida peculiar.
Os Atos dos Apóstolos, catequese narrativa versando sobre os primórdios da Igreja Cristã, usa setenta vezes a palavra Espírito (pneuma) para sublinhar sua ação na vida dos primeiros missionários e das primeiras comunidades, reunidas em torno da memória do Ressuscitado e seu projeto de vida centrado em Deus e seu Reino. At 2,1-13 descreve o derramamento do Espírito Santo, “como línguas de fogo”, sobre os discípulos do Ressuscitado, por ocasião da festa de Pentecostes, de modo que “ficaram repletos do Espírito Santo” e começaram a proclamar a Boa Nova da ressurreição, em linguagens entendidas por todos (v. 4). O Espírito Santo lhes dava coragem para testemunhar o Ressuscitado com toda coragem (At 5,32-33). E guiava os apóstolos em suas andanças missionárias, como aconteceu com Filipe (At 8,29.39), Pedro (At 10,19-20) e todos quantos se tornavam discípulos e discípulas pela recepção do batismo (At 11,45-47; 15,8; 19,6). Inspirou a comunidade de Antioquia a enviar Barnabé e Saulo em missão (At 13,2.4). O apóstolo Paulo tinha consciência da contínua assistência do Espírito em seus percalços missionários (At 20,23). O Espírito que guiava a missão da Igreja, em certo momento, por motivos desconhecidos, impediu os missionários de chegarem à Bitinia (At 16,7). Sobretudo, o Espírito Santo assistia a Igreja nascente em suas tomadas de decisão, como aconteceu por ocasião do chamado Concílio de Jerusalém (At 15,1-30). A comunidade tinha consciência de que o acordo alcançado em torno de uma questão delicada resultou da inspiração divina. A constatação “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós” (v. 28) reflete a presença e a ação do Espírito Santo na comunidade dos discípulos e das discípulas do Ressuscitado, em discernimento.
Estando para celebrar a Solenidade de Pentecostes, esse breve percurso em torno do Espírito Santo na tradição bíblica judaico-cristã oferece uma chave para se discernir o atual fenômeno neopentecostal que, como um tsunami, leva de roldão as igrejas cristãs do nosso país, de Norte a Sul. A prática da glossolalia (falar línguas desconhecidas), os eventos de massa e os cultos midiáticos e espetaculosos, o culto de personalidades com habilidades para manipular consciências e seus pretensos dons de curas e milagres, a insistência na teologia da prosperidade, a presença maciça e sem controle nos meios de comunicação, somados à contaminação com política partidária de caráter duvidoso, a leitura fundamentalista da Bíblia, a aversão a uma abordagem crítica da fé e ao ecumenismo devem ser criteriosamente avaliados à luz da tradição bíblico-evangélica, de modo a se verificar sua identidade cristã. Em outras palavras, o que têm a ver com o Espírito Santo da fé bíblica e cristã, pois, embora ligado a igrejas cristãs, o neopentecostalismo parece caminhar paralelo à sabedoria do Mestre Jesus de Nazaré.
Uma oração bem conhecida da tradição cristã-católica brasileira pede: “vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis com o fogo do vosso amor!” Em seguida, se dirige ao Pai: “enviai o vosso Espírito e tudo será criado e renovareis a face da terra!” O Espírito Santo é confessado como possuidor de um “amor abrasador”, cujo dinamismo cria e renova o mundo. Portanto, o foco de sua ação recai sobre a capacidade de amorizar tudo e, por conseguinte, dar origem ao mundo novo em que a solidariedade misericordiosa, o perdão e a reconciliação fraterna e o cuidado gracioso com os seres humanos e a Casa Comum correspondam ao ethos dos discípulos e das discípulas de Jesus de Nazaré, o Ressuscitado.
Essa chave de interpretação dá conta de entender a presença e a atuação do Espírito Santo na tradição bíblica, na vida das comunidades cristãs e na história de cada discípulo e discípula de Jesus Ressuscitado. E serve de critério para discernir o que, na atualidade, se atribui ao Espírito Santo no fenômeno neopentecostal, onipresente nas Igrejas cristãs. Com ele, se torna possível resguardar-se das falsas manifestações do Espírito Santo desprovidas daquele “amor abrasador” que gera o mundo querido por Deus para seus filhos e suas filhas.
“Vinde, Espírito Santo, renovai a face da terra com o fogo do vosso amor!”
Pe. Jaldemir Vitório SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
29/05/2025