Francisco das Chagas de Albuquerque
Como seres humanos dotados de talentos, capacidades e desejos, percorremos caminhos, passamos os anos de nossa existência finita e participamos do percurso da história, carregando em nosso íntimo e em nossos compromissos vitais sonhos de uma vida mais humana. Na verdade, “no núcleo mais íntimo de cada ser humano está a luz do amor de Deus” (R. Guardini). Ao longo dessa travessia sempre nos acompanham luzes, sombras e esperanças tanto no nível pessoal como coletivamente.
Ao finalizarmos mais um ano, podemos identificar diversos acontecimentos e situações que se manifestam como luzes ou sombras; mas é também oportunidade para situar nossa esperança e motivações diante da realidade que nos envolve. Seria muito animador se conseguíssemos assinalar acontecimentos e realizações que refletem verdadeiros “sonhos de humanidade”, tais como convivência fraterna e harmoniosa nos diferentes âmbitos das relações humanas, sociais, políticas e religiosas. Evitando pessimismo, mas mantendo uma atitude positiva, podemos assumir uma postura realista. Obviamente, cada pessoa tem sua visão sobre a realidade que consegue alcançar desde o lugar onde se situa como indivíduo, com seus princípios, valores e convicções.
Nesse sentido, queremos lembrar alguns sinais que nos afetam trazendo luzes, sombras e esperanças. Tratando do Ensino Social da Igreja, o Papa Francisco afirma: “O amor social é uma ‘força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e renovar profundamente, desde o interior, as estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos’ ” (Fratelli Tutti 183).
Frente aos desafios do tempo presente, devemos, antes de tudo, estar conscientes de que corremos o risco de nos tornarmos pouco sensíveis, como que anestesiados diante de atrocidades tamanhas como as guerras que ocorrem ao redor do planeta, configurando uma negação cabal da dignidade do ser humano e do direito à vida e vida digna na sua integralidade. De fato, a mídia, hoje altamente potencializada pelos avanços da tecnologia e dos modernos instrumentos, lança a todo momento notícias, informações e relatos de práticas insanas que destroem vidas humanas e o meio ambiente. Em tempo real, esses meios de comunicação e informação colocam diante de nós ocorrências e situações de tamanhas e estarrecedoras injustiças, a tal ponto que podem gerar uma densa nuvem que atinge o ânimo das pessoas, enfraquecendo suas esperanças ou mesmo levando-as a fugir da realidade.
Nomeamos alguns dessas situações de brutalidade e desumanidade: as guerras entre Israel e Hamas na faixa de Gaza, entre Rússia e Ucrania; os regimes ditatoriais e intolerâncias de caráter religioso. Se considerarmos o contexto brasileiro, aí estão os ataques provocados por grupos do “crime organizado”, as polarizações no campo sociopolítico que se refletem no âmbito religioso, inclusive no catolicismo; os assassinatos de mulheres; as fraudes e corrupções envolvendo pessoas de diferentes níveis sociais, ambientes e instituições, cujas revelações se tornam corriqueiras. A lista dessas negatividades seria muito longa. Mas basta esse breve elenco de fatos para os sentirmos como sombras que causam dores e sofrimentos, deixando marcas na vida de muitas pessoas, da sociedade e da nossa história em pleno século XXI. São sombras que precisamos enfrentar com meios de não violência, com posturas positivas, como gestos proféticos, propostas e iniciativas geradoras de justiça e paz, de defesa do bem comum.
Por outro lado, percebemos e, em vários casos presenciamos, eventos, fatos e ações que despontam como raios de luz em meios a cenários caóticos onde quase não se consegue experimentar o gozo da alegria de viver neste mundo. São pequenas conquistas e avanços concretizados através do esforço e da perseverança, da disponibilidade e da capacidade de solidariedade de pessoas, grupos, organizações locais e mundiais. Tais sinais de mais vida e mais humanidade são aparentemente pequenos e até mesmo de pouca força e capacidade de aprofundamento e expansão. No entanto, constituem uma injeção de ânimo e abertura de perspectiva de um futuro melhor e reafirmação da crença na possibilidade de o ser humano, em sua individualidade e por sua pertença a uma comunidade, desenvolver sua humanidade. Temos clareza de que a transformação necessária passa pela mudança de estruturas e relações de poder, mas, ante de tudo, por uma “conversão” ao valor da vida do ser humano e dom de toda a criação. Não é fácil, mas é possível renovarmos nossa esperança mantendo os pés no chão.
A propósito da necessidade de refazer as forças do espírito para enfrentar o nevoeiro dos males presentes em nosso mundo, é oportuno recordar alguns passos, iniciativas, processos iniciados ou impulsionados ultimamente, fatos e acontecimentos do ano que findará dentro de poucos dias. Mencionamos, em primeiro lugar, os esforços por promover o diálogo em vista de superar os conflitos armados; a busca de caminhos para enfrentar a falta de segurança nas cidades. Ao longo deste ano ocorreram eventos significativos, entre ele o fim do regime de ditatorial na Síria, mesmo que pairem muitas incertezas quanto ao futuro daquele país; a realização dos Jogos Olímpicos, na França, favorecida, também, pela reabertura da Catedral de Notre Dame. No campo religioso católico tivemos a realização da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que tratou do tema “Para uma Igreja sinodal: Comunhão, Participação e Missão”; a realização do Fórum Internacional G20, no Brasil. Não podemos esquecer que existe uma imensa quantidade de gestos de solidariedade, partilha, doação e gratuidade como os que ocorreram por ocasião das inundações no Rio Grande do Sul no início de 2024. Além disso, há muitos sinais de fraternidade e respeito à vida humana e da “casa comum” que não aparecem nas redes sociais nem são noticiados pelos tradicionais grandes veículos de comunicação. No entanto, em diferentes lugares do Brasil e do mundo, as sementes de vida estão plantadas e vão gerando frutos de aproximação, de diálogo, de cooperação entre pessoas, grupos, nações, culturas. Na esteira de esperança, Francisco destaca que é necessário “reconhecer que, ‘o amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor’ ” (Fratelli Tutti 181).
Não obstante, a existência de inúmeras marcas de sombras, mesmo com certas tendências a se tornarem trevas que caem sobre as vidas humanas e a criação, vemos com alegria sinais que apontam para a persistência na busca da realização dos sonhos de mais humanização em nosso mundo. A esperança aliada ao ideal de construirmos um mundo onde se vive a fraternidade e a amizade social, desdobradas em solidariedade e empenho em prol do bem comum, prevalecerá e, com ela, o compromisso de cada homem e cada mulher para que os sonhos que nascem do mais profundo de nossa humanidade sejam vislumbrados e, pouco a pouco, realizados. “A esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).
Nas proximidades das Boas Festas, desejo a todos os que acompanham o Palavra & Presença uma luminosa e esperançosa celebração do Natal do Senhor e venturoso Ano Novo de 2025.
Francisco das Chagas de Albuquerque é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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