Padre Alfredo Sampaio Costa SJ
Os estudiosos sobre a espiritualidade inaciana sempre concordaram sobre um ponto: Inácio foi um homem do seu tempo, alguém que soube viver como poucos, não obstante o complexo contexto social, político, cultural em que viveu, na alvorada da Modernidade.
Mas se os Exercícios inacianos são expressão da experiência espiritual de um homem que viveu nessa situação específica, profundamente enraizado no seu tempo, alguém poderia levantar a questão de como então poderia algo concebido a partir de esquemas antiquados e estranhos ao nosso tempo continuar sendo útil para a mentalidade pós-moderna na qual estamos mais do que mergulhados[1]. A objeção não é fácil de ser respondida. Mas procuraremos indicar algumas pistas, sem a pretensão de esgotar uma resposta.
O jesuíta canadense Jacques Lewis selecionou alguns elementos que, segundo ele, garantem o “sucesso” dos Exercícios Espirituais hoje[2]. Ele começa com o termo “EXPERIÊNCIA”[3]. Certamente, nossa civilização – escreve ele – repugna visões religiosas que caem do alto e um sistema de dogmas aos quais a pessoa se sente obrigada a aderir. Tudo o que vem de fora e é imposto não goza hoje de muita popularidade, especialmente se tratando do âmbito religioso. O que a pessoa aspira e deseja com todas as suas forças é “fazer ela mesma uma experiência” de contato com o Transcendente. Ora, na sua essência, isso é exatamente o que os Exercícios Espirituais se propõem a fazer. Aliás, eles se definem exatamente por esse caráter experiencial, vivencial, concreto.
O homem e a mulher pós-modernos cujo olhar de fé não provém mais da Tradição, mas que querem estabelecer o seu itinerário espiritual baseando-se unicamente na sua própria experiência espiritual, encontram nos Exercícios uma estrada aberta para isso.
Assim que os Exercícios Espirituais não se apresentam como uma Sessão de Espiritualidade à qual alguém viria se instruir nem tampouco como um período para incrementar a piedade ou aprofundar o fervor.
Inácio na anotação décima-quinta insiste com aquele que dá os Exercícios que deve deixar Deus e a criatura se comunicarem imediatamente uma à outra (cf. EE 15), num contato direto, pessoal, com-penetrado. Gilles Cusson havia entrevisto nos Exercícios uma “pedagogia da experiência espiritual pessoal”[4].
O segundo elemento que Lewis aponta é a AUTONOMIA ESPIRITUAL. Nossa época pós-moderna se caracteriza exatamente pela recusa em aceitar normas absolutas e intervenções de uma autoridade que viesse a interferir na consciência individual, papel que, por diversos motivos, é atribuído exatamente à Igreja, causando assim uma rejeição imediata por parte do homem e da mulher pós-modernos. Ora – insiste Lewis – nos Exercícios é a esse ideal de iniciativa pessoal e autonomia sobre o plano espiritual que a pessoa é convidada a iniciada. Cada um que entra nos Exercícios, desde o início, é convidado a descobrir a orientação da própria vida (EE 1), e não para se curvar àquilo que o diretor dita a ela. A importância do verbo “buscar” foi lembrada por vários estudiosos do texto inaciano. Busca que é essencialmente “pessoal”, “insubstituível”, ainda que feita sempre “ sob a ação do Espírito, à luz das contemplações dos mistérios da vida de Cristo. Essa busca se efetua por tentativas de discernimento e termina em uma escolha que o diretor dos Exercícios deve se cuidar muito para não influenciar. Todo o processo das “eleições” nos Exercícios é o pôr-se em marcha da liberdade profunda do retirante. Assim que o retiro inaciano é uma escola de autonomia iluminada pela fé orante.
Busca-se ali contemplativamente o Senhor que se comunica a cada um de um modo particular e único, revelando-lhe o apelo singular que endereça àquela pessoa na sua vivência concreta. Essa dinâmica motriz dos Exercícios deixa bem à vontade o homem e a mulher pós-modernos, apreciadores dessa liberdade e autonomia.
Para citar mais um elemento enfatizado por Lewis, escolhemos a DIGNIDADE DO TERRESTRE[5]. Hoje, mais do que nunca, a humanidade, empurrada e atraída pelos avanços das ciências, abre-se às maravilhas do cosmos, e manifesta uma crescente consciência do caráter sagrado do “criado”, e o dever de cuidar dessa criação. Tudo o que diz respeito ao mundo, portanto, interessa ao homem de hoje. Ora, a espiritualidade inaciana, notadamente, remete a essa preocupação e cuidado por tudo o que é criado. Inácio surpreende com a sua visão otimista com relação à criação, onde tudo parece deixar transparecer Deus. Bastaria lembrar aqui os textos de abertura e de conclusão dos EE – referimo-nos aqui ao Fundamento e à Contemplação para alcançar o amor – marcadamente entusiastas desse amor apaixonado de Deus que está presente, atuando, por meio de suas criaturas.
O saudoso Padre Mac Dowell, em um artigo exemplar do ano 1991 escrito em Roma[6] defende a atualidade da experiência espiritual inaciana a partir do momento em que a síntese inaciana responde não somente aos desafios levantados pela Modernidade, mas vai para além dela, superando-a. E, portanto, pode ser atual numa realidade pós-moderna:
Mais do que refletir passivamente o seu ambiente — e nisso consiste a originalidade de seu contributo —, ele reforça seletivamente certas dimensões desta realidade numa síntese criadora, projetando uma imagem que vai concorrer decisivamente para a configuração do futuro. Nem por isso, a sua figura complexa de santo e de personagem histórico de primeira grandeza pode ser interpretada adequadamente a partir das categorias da modernidade. Ao mesmo tempo que assume alguns dos traços que vão caracterizar posteriormente a civilização moderna, ele os redimensiona numa síntese superior, capaz de orientar os passos do homem contemporâneo para além da própria crise do mundo moderno. Daí a sua atualidade[7].
Trata-se de reagir contra a absolutização da razão, do indivíduo e do mundo, consentânea com o espírito moderno, transcendê-los, para salvá-los em seu valor genuíno. Numa combinação “sui generis” de intuição e racionalidade, de mística e política, de comunhão profunda com Deus e compromisso efetivo com o mundo, de perspectiva comunitária e respeito pela individualidade, Inácio de Loyola oferece uma pista promissora para quantos procuram uma orientação no horizonte confuso da cultura contemporânea. Ele não reduz um elemento outro, não sacrifica a racionalidade em nome da intuição, nem pretende que a política se converta em mística. Cada dimensão guarda a sua consistência peculiar, não, porém, como grandezas estanques, mas numa intima complementaridade. Com efeito, é o polo transcendente que fundamenta e anima seu próprio desdobramento na ação racional dos indivíduos no meio do mundo.
Adroaldo Palaoro, refletindo sobre o que os EE têm a dizer para o mundo pós-moderno[8], afirma que é exatamente nesse contexto de profunda desumanização que os Exercícios Espirituais revelam sua atualidade e sua força transformadora. Centrado na pessoa, o processo dos Exercícios mobiliza e reordena todas as suas dimensões e propõe um caminho de plena HUMANIZAÇÃO. Ele desafia cada um a assumir o potencial humano criativo que está latente em seu interior.
Outro ponto onde os EE têm algo a dizer para a sociedade atual é no que diz respeito à realidade dos DESEJOS. Adroaldo chama a atenção para o fato que na Pós-Modernidade atrelada à economia de mercado, os desejos se situam na linha da estética da moda, do corpo escultural perfeito, dos imediatismos, da vida feliz dentro dos parâmetros de um individualismo consumista exacerbado, da religião do sucesso e de uma existência “leve” sem compromissos definitivos ou muita preocupação. O processo dos Exercícios desperta os desejos genuínos que carregamos dentro de nós, ajudando a pessoa a se libertar desses atrativos fúteis e a nos centrarmos naquilo que temos de mais importante dentro de nós.
Poderíamos prosseguir com outros elementos “atuais” ou “perenes” dos Exercícios. Por exemplo, o esforço por uma PERSONALIZAÇÃO e ADAPTAÇÃO. Chama a atenção a flexibilidade com que Inácio, injustamente acusado de sufocar o exercitante com minuciosas instruções e orientações sobre detalhes de cada exercício de oração, na verdade demonstra um enorme respeito, interesse, “reverência” sobre o caminho pessoal que cada um vai construindo e trilhando ao longo de um percurso que nada tem de predeterminado ou banal.
Alguns anos atrás a Companhia de Jesus elaborou um importante documento intitulado “Curar um mundo ferido”[9] onde expressou que hoje a sua missão não pode deixar de contemplar a questão do meio ambiente e da sustentabilidade. Essa perspectiva perpassa de fato todos os Exercícios Espirituais, como descreve o próprio documento no n. 46: “A espiritualidade inaciana e, mais especificamente, os Exercícios Espirituais oferecem uma profunda fonte de inspiração para desenvolver ideias e novas relações no que diz respeito à criação[10]. A primeira consideração proposta por Inácio é o “princípio e fundamento” (EE, 23). Hoje compreendemos que a criação é “tanto um recurso procedente de Deus como uma estrada para Deus, que possibilita aos seres humanos a comunicação. Temos que discernir cuidadosamente a nossa relação com a Criação e sermos indiferentes, isto é, que desenvolvamos uma liberdade interior para ver as coisas criadas na sua relação com Deus e os seus planos para o bem comum da humanidade. Uma nova compreensão mais profunda da teologia da criação nos leva a dar-nos conta que a criação é a primeira grande obra da redenção e o ato salvífico fundamental de Deus. A redenção ocorre, pois, no contexto da criação, onde a humanidade cresce e amadurece a sua relação com Deus e em seu próprio seio”[11].
Nos EE, o exercitante é convocado a verificar as repercussões a nível afetivo desses toques de Deus, os incômodos causados pelas sugestões do “inimigo da natureza humana” que procura perturbar esse diálogo amoroso, além das próprias resistências humanas da nossa sensibilidade afetada por tantos fatores. A genialidade de Inácio se demonstra especialmente no modo como ele vai ajudando a pessoa a tomar posse desse rico mundo interior, grandemente desconhecido e ameaçador, colaborando por meio do DISCERNIMENTO ESPIRITUAL e do ACOMPANHAMENTO PESSOAL para que a pessoa se torne senhora de si mesma e do seu mundo interior, ao mesmo tempo em que perscruta atenta toda a realidade ao seu redor para captar e assimilar os sinais deixados pela presença do Senhor que interpelam a sua liberdade. Gaston Fessard – definiu a grandeza dos Exercícios na sua dialética da Liberdade[12], onde vamos aprendendo à luz da fé e movidos pelo Espírito a nos desembaraçarmos de tudo o que nos atrapalha para sermos nós mesmos e para nos colocarmos a serviço da maior glória de Deus. Essa atenção constante a tudo o que pode interferir na nossa LIBERDADE, desordenando os nossos afetos, é algo essencial à dinâmica dos Exercícios, e muito apreciado hoje e sempre.
Pe. Alfredo Sampaio Costa é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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[1] Alfred Ducharme preocupou-se especialmente dessa questão no seu artigo Les Exercices Spirituels… de la chrétienté à la modernité. CahSpIgn 107 (juillet-septembre 2003) 97-105.
[2] Jacques LEWIS, L´Actualité des Exercices Spirituels, CahSpIgn 118 (2007) 99-105.
[3] Jacques LEWIS, L´Actualité des Exercices Spirituels, 99-102.
[4] Gilles Cusson, Pédagogie de l’expérience spirituelle personnelle: Bible et Exercices spirituels, Paris: Éditions Bellarmin, 1986.
[5] Jacques LEWIS, L´Actualité des Exercices Spirituels, 104.
[6] João A. MAC DOWELL, Atualidade de Inácio de Loyola, Síntese Nova Fase 18 (1991) 289-302.
[7] João A. MAC DOWELL, Atualidade de Inácio de Loyola, 289.
[8] Adroaldo PALAORO, Exercícios Espirituais no contexto pós-moderno. Material não publicado.
[9] Publicado em Promotio Justitiae n. 106 (2011/2).
[10] Joseph CARVER SJ, Ignatian Spirituality and Ecology: Entering into Conversation with the Earth (2010); publicado em Promotio Iustitiae 105, 2011/1.
[11] Jim PROFIT SJ, “Ejercicios Espirituales y ecología”, Promotio Iustitiae, 82, 2004/1. A criação é o lugar da salvação, não um mero cenário desta (Cf. Sallie McFague, The Body of God, Augsburg Fortress Press, Minneapolis 1993, 180-182).
[12] Na sua importante obra “La Dialectique des Exercices Spirituels de Saint Ignace de Loyola”, Paris: Aubier 1956-1957.