Eduardo Carvalho da Silva
Elton Vitoriano Ribeiro SJ
Uma das características humanas que a pandemia da Covid-19 evidenciou é a vulnerabilidade. Mesmo diante de muitos avanços tecnocientíficos, as diversas populações do planeta viram-se ameaçadas por uma doença ainda não conhecida, bastante contagiosa e com altos índices de complicações respiratórias que avançou rapidamente. Diante de um quadro sanitário crítico, a pandemia realçou os graves problemas socioeconômicos e estruturais de muitos países. Além disso, para lidar com essa situação, foi necessária uma grande cooperação de todas as sociedades. Aparentemente, o isolamento das relações sociais, para evitar a infecção pelo vírus, deveria realçar o individualismo, característica comumente percebida das sociedades contemporâneas, mas não foi sempre assim. Muita solidariedade surgiu neste momento.
A experiência atual de confronto com o sofrimento e a morte de tantas pessoas, de distintas idades, e perfis de saúde, expôs a fragilidade da vida humana e com ela, o desejo de preservá-la. A busca pela vida implica, neste cenário, uma compreensão e uma reorientação: a compreensão de que viver bem é proteger-se e proteger a outros e, assim, reorientar as dinâmicas diárias de cada um para essa finalidade. Isto significa adquirir novos hábitos nos quais o auto isolamento, por exemplo, tem o intuito de favorecer um bem comum. Há, dessa forma, um nítido senso de orientação social, muito diferente de uma preocupação restrita a interesses individuais. As ações de um indivíduo têm claro impacto sobre a vida em sociedade, quando se consideram as tramas que se entrelaçam por meio das relações estabelecidas na vida de uma pessoa.
Por outro lado, cabe salientar que nem todas as pessoas sentem-se implicadas nas atitudes recomendadas durante a pandemia na intenção de favorecer tal bem comum. Tomem-se, por exemplo, as posições que tendem a sobrepor as questões econômicas à proteção da saúde dos indivíduos e do sistema de saúde. Esses discursos parecem ter uma preocupação com a sociedade, sob o argumento de prevenção de uma crise gerada por desemprego e baixo consumo, mas podem mascarar interesses mesquinhos de luta pelo poder. Ademais, tais argumentos impedem a discussão mais ampla de proteção social como a de uma renda mínima justa distribuída pelo Estado aos cidadãos mais prejudicados, por exemplo.
De qualquer modo, a situação de dependência, como característica inerente à experiência humana, mostra-se acentuada durante a pandemia, para além das questões econômicas, que em si mesmas já são importantes de serem consideradas. Não somente com relação às crianças, às pessoas com algum tipo de doença física ou mental, ou às pessoas idosas, pelas suas condições próprias de vulnerabilidade. A população adulta, fora destas particularidades, vê-se também vulnerável e dependente da cooperação uns dos outros. Sua eticidade individual é confrontada em dois níveis. Em primeiro lugar, para proteger as populações mais propensas a desenvolver quadros agudos da Covid-19. Num segundo momento, para protegerem-se a si mesmos e à sociedade, não somente como população economicamente ativa, mas como população eticamente responsável. No esforço de apresentar condutas exemplares diante desta crise, alguns chefes de governo, influenciadores culturais, pessoas de referência, dentre outros, colaboram para o melhor cumprimento das normas recomendadas por meio de seus discursos e ações.
O filósofo Alasdair MacIntyre ajuda a iluminar, com certa ironia, a realidade da cooperação e dependência entre os indivíduos, quando confronta uma famosa passagem de Adam Smith, em A Riqueza das Nações, utilizada para justificar a prioridade econômica nas relações humanas: “É, de fato, verdade que “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração pelo seu próprio interesse” (Adam Smith, The Wealth of Nations I, ii). E justamente porque o açougueiro, o cervejeiro e o padeiro geralmente agem com respeito ao seu próprio interesse, que também o fazem os seus clientes. Mas se, ao entrar no açougue como um cliente habitual encontro o açougueiro padecendo de um ataque do coração, e eu meramente constato “Ah! Vejo que não está em posição de me vender minha carne hoje” e vou imediatamente ao açougue rival para completar minhas compras, eu terei óbvia e grosseiramente estragado toda a minha relação com ele, incluindo minha relação econômica, embora eu não tenha feito nada que contrariasse as leis do mercado (Alasdair MacIntyre, Dependent Rational Animals, 1999, p.117)”.
As relações comerciais e econômicas deveriam, portanto, ser sustentadas por meio de outras relações que não corrompam os laços comunitários. As relações de reciprocidade permitem, por outro lado, a boa convivência e marcam a dependência humana. Ao longo da pandemia, as atitudes que favorecem este tipo de relação dizem respeito ao notório reconhecimento da dependência humana. Assim, as virtudes que favorecem as ajudas mútuas, oferecendo a quem não tem e recebendo de quem tem, mostram-se um caminho para o crescimento humano e comunitário. Por este motivo, aquelas virtudes aprendidas e exercitadas nas comunidades e tradições de cada pessoa são postas à disposição verdadeiramente como dom.
Portanto, como seres contadores de histórias, a narração que os indivíduos farão, no futuro, deste contexto desafiador exprimirá o exercício das virtudes pelas quais os bens associados à sociedade são buscados. As antigas e novas práticas, com seus bens internos, que estão se transformando e surgindo, desafiando e promovendo a atualização das tradições para um aperfeiçoamento das virtudes, expressam contemporaneamente uma aposta na capacidade da fragilidade humana em revelar a excelência das ações individuais.
Eduardo Carvalho da Silva é jesuíta, aluno do curso de Filosofia da FAJE
Elton Vitoriano Ribeiro SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia e reitor da FAJE