Cláudia Maria Rocha de Oliveira
A Encíclica Fratelli Tutti possui como objetivo “pensar e propor caminhos que tornem possível o desenvolvimento da amizade social e da fraternidade universal”. Ela está dividida em oito capítulos e duzentos e oitenta e sete parágrafos. O título, como sabem, faz referência a uma admoestação escrita por São Francisco para que todos nós possamos nos reconhecer como irmãos e irmãs. Ao seguir o Santo de Assis, o papa nos convida a um amor sem fronteiras, capaz de superar a lógica do conflito e da divisão entre pessoas e povos.
Na introdução da Encíclica encontramos importantes chaves de leitura. Pretendemos indicar aqui quatro pontos que nos parecem fundamentais:
1) A amizade social e a fraternidade universal nascem do encontro concreto entre as pessoas. A Encíclica deve ser compreendida como um texto que aponta para a necessidade de ações concretas que implicam o estabelecimento de relações reais de reconhecimento e consenso. Por isso, o papa faz questão de dizer que seu encontro com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb não deve ser visto como mero ato diplomático. Estamos, na verdade, diante de um exemplo de autêntico engajamento e esforço para estabelecer caminho conjunto, com o objetivo de encontrar, com responsabilidade, soluções comuns para os desafios atuais. A amizade social e a fraternidade universal têm origem, portanto, a partir do encontro. Este supõe ser capaz de se colocar ao lado do outro, ser capaz de reconhecê-lo apesar das diferenças culturais, sociais, religiosas, e de construir com ele caminhos de esperança.
2) A universalidade da fraternidade não pode ser compreendida como ideal universal homogeneizador e nivelador que iguala tudo abstratamente, nem deve ser equipada à bandeira defendida pela Revolução Francesa. A encíclica se apresenta como um chamado à construção de uma concreta sociedade fraterna, que apenas pode ser compreendida como universal à medida que for capaz de incluir a todos e todas, por meio da promoção do encontro gratuito entre as pessoas. Em consequência, apenas podemos falar em fraternidade universal quando estiver garantida a possibilidade da afirmação e do reconhecimento da igualdade entre as pessoas e os povos.
3) A universalidade, defendida pelo papa Francisco, embora esteja intimamente vinculada à possibilidade do reconhecimento da igualdade, não é uma universalidade monocromática. Isso porque, a igualdade apenas pode ser compreendida adequadamente se a pensarmos dialeticamente como igualdade na diferença. Em consequência, a noção de igualdade defendida pela encíclica não deve ser confundida com noção matemática de igualdade. Esta última é niveladora e homogeneizadora. A partir dela, surge o risco de o ideal de fraternidade ser colocado de lado em nome de pretensões autoritárias. Ao contrário, a igualdade implicada na amizade social e na fraternidade universal é compatível com o pluralismo e a diversidade. Ela pode ser pensada como igual chance de satisfação das necessidades, como reconhecimento de iguais direitos perante a lei, mas fundamentalmente como igual chance de se fazer ouvir e de participar. A igualdade que está na base da amizade social e da fraternidade universal não é, portanto, contrária à diferença. Ela nasce do encontro e do reconhecimento do outro. A pluralidade, a variedade de vozes, reconhecidas e acolhidas, quando se colocam juntas, por meio do encontro, é que tornam possível a afirmação da verdadeira igualdade e, em consequência, da universalidade em sentido concreto.
4) A encíclica não é um mero discurso teórico, mas é uma carta que tem implicações práticas muito fortes. Trata-se de um documento no qual o papa propõe linhas de ação e faz um apelo para que elas sejam seguidas. Mas, ele não apenas diz o que deve ser feito. Ele procura demonstrar o que precisa ser feito por meio de sua própria ação. Nesse sentido, o papa, através da Encíclica, procura indicar exemplos que são verdadeiros testemunhos que nos chamam à experiência de um amor sem limites.
A partir desses quatro pontos é possível perceber que estamos diante de um texto riquíssimo que precisa ser saboreado, meditado, interiorizado, colocado em prática… A Encíclica nos convida e nos convoca a construirmos juntos uma sociedade mais justa, onde sejamos capazes de viver como irmãos e irmãs, através da experiência do acolhimento e do dom de sim.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE