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Ler os clássicos. A propósito dos 50 anos de Teologia da libertação, um “clássico” da teologia latino-americana

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Geraldo De Mori SJ

Todo escriba que se torna discípulo do Reino dos céus é semelhante a um pai de família que do seu tesouro tira coisas novas e velhas” (MT 13,52).

David Tracy, teólogo norte-americano, na obra A imaginação analógica. A teologia cristã e a cultura do pluralismo, propõe uma reflexão sobre os clássicos em geral e os clássicos religiosos em particular, aplicada por ele ao cristianismo, que vale a pena ser retomada por ocasião dos 50 anos da publicação de Teología de la liberación, livro de Gustavo Gutierrez tido como inaugurador dessa corrente teológica que tanto marcou o cristianismo latino-americano e reverberou no conjunto da teologia cristã pelo mundo.

A ideia de clássico, em geral, é muito utilizada no âmbito das artes e da literatura. Fala-se de obra clássica, seja da pintura, da música, da escultura, da arquitetura, da literatura, do cinema. Não só obras são tidas por clássicos, mas também autores e suas contribuições. Em geral, um clássico, qualquer que seja sua procedência, é uma espécie de paradigma, que se torna referência para aquele campo artístico, literário ou aquela área do saber. Muitos clássicos traduzem o espírito de uma época, embora sempre a ultrapassem, sendo vistos como imortais ou perenes, por aquilo que revelam do mundo, do ser humano e, no campo religioso, da relação que aquele grupo específico considera como tradução de uma experiência de revelação do sagrado, do sentido radical, de Deus.

Segundo Tracy, existem não somente obras clássicas, mas também pessoas que podem ser tidas como clássicos. No caso do cristianismo, ele identifica o evento Jesus de Nazaré, confessado como Cristo, Senhor, Filho do Homem e Filho de Deus como o clássico da fé cristã, e, por extensão, os textos que buscam dizer esse clássico, a saber os escritos do Novo Testamento e muitas das obras que se esforçaram por interpretá-los em cada grande época da era cristã, como, entre tantos, A Apologia, de Justino, as Confissões, de Santo Agostinho, a Suma Teológica, de Santo Tomás, o Itinerário da mente para Deus, de São Boaventura, os textos de Lutero, o Comentário da carta aos Romanos, de Karl Barth, o Curso fundamental da fé, de Karl Rahner, a Teologia sistemática, de Paul Tillich. Curiosamente, quando fala da teologia da libertação, o teólogo norte-americano não consegue identificar nenhuma obra que poderia ocupar o lugar de um clássico. Segundo ele, nessa corrente teológica, mais que uma obra tida como clássica, haveria que identificar as próprias iniciativas que o evento Jesus Cristo suscita em ambientes de injustiça e violência, que se traduzem em solidariedade, denúncia profética e serviço.

O livro de Tracy, publicado em 1981, não possuía a distância necessária para identificar, dentre as publicações da teologia da libertação, aquela que poderia ocupar o lugar de um clássico. Os historiadores recentes dessa corrente da reflexão latino-americana identificam suas origens em autores e obras anteriores ao livro de Gutierrez, como a tese doutoral de Rubem Alves, defendida nos USA, Towards a theology of liberation, publicada com o título A theology of human hope, em 1969, ou os livros de Juan Luis Segundo, Teología abierta para el laico adulto, publicados entre 1969-1971, ou a obra La liberación: la hora de la acción, de Rafael Ávila, de 1969, ou ainda a obra Diálogos de liberación, de Arturo Paoli, de 1969, ou, enfim, a obra Opresión-liberación: desafío a los cristianos, de Hugo Assmann, publicado em 1971, em Montevidéu. Nos últimos anos, o pontificado de Francisco trouxe à luz toda a contribuição da corrente argentina da teologia da libertação, conhecida como Teologia do povo, embaralhando, sob certo ponto de vista, os dados sobre o período inicial da teologia latino-americana.

Embora pareça desprestigiar a teologia da libertação, ao dizer que ela não contava, até o início dos anos 1980, com um “clássico” que a representasse, a questão levantada por Tracy é importante. Para ele, as grandes contribuições da teologia cristã são marcadas, sobretudo, por duas grandes perspectivas, a da manifestação, que tem origem na revelação de Deus como sagrado ou santo, expressas, sobretudo, nas teologias da encarnação, de caráter mais sacramental; a da proclamação, cuja origem é a pregação profética, expressa, sobretudo, nas teologias da Palavra. Uma terceira perspectiva, posta em evidência, sobretudo, pelas teologias políticas e da libertação, é a que privilegia a práxis, propondo um agir que desmascara tanto as leituras individualistas e burguesas da manifestação, quanto as tendências pessimistas de uma proclamação que não consegue ver nenhuma irrupção da presença de Deus no mundo.

Toda teologia quer dar conta da experiência da fé, mostrando sua razoabilidade frente aos vários públicos diante dos quais quem crê se encontra: 1. os membros da própria comunidade eclesial, e suas diferentes percepções de Deus, do mundo, dos demais, mostrando o caminho de plenitude que brota da experiência de fé; 2. a sociedade e suas diferentes estruturas, com as quais a pessoa que crê interage, buscando perpassá-las da seiva renovadora e transformadora do Evangelho; 3. o mundo acadêmico, que de muitas maneiras questiona o crer e as instituições que dele derivam.

Ao identificar o “clássico” da teologia da libertação com uma práxis que denuncia o que no mundo e na comunidade cristã impedem a irrupção do reinado de Deus (o pecado entendido como injustiça e atentado à dignidade humana), e, ao mesmo tempo, inspira experiências de solidariedade, serviço samaritano e construção de um mundo mais reconciliado, Tracy amplia certamente a noção de clássico. Na verdade, ao dizer que o evento Jesus Cristo é o clássico por antonomásia do cristianismo, ele já apontava para essa ampliação, uma vez que, segundo ele, esse clássico é reapresentado no hoje dos que nele creem e se inspiram, tornando a salvação que ele inaugurou com sua vida, morte e ressurreição, algo atual na vida de seus seguidores e seguidoras. Dito isso, talvez, 30 anos depois da afirmação de Tracy, que coincide com os 50 anos da publicação de Teología de la liberación, é possível pensar a revisão do parecer que então o teólogo norte-americano havia dado sobre o livro tido por grande parte da teologia como inaugurador da teologia da libertação. De fato, o texto de Gutierrez é tido como referência de uma maneira de “dar as razões da esperança” (1Pd 3,15) que não se contenta em refletir sobre o Deus que se manifesta ou sobre a Palavra que é proclamada como denúncia das tentações idolátricas do sujeito, pois a fé que não se traduz em práxis concreta, que faz advir o mundo novo, reconciliado, no qual reinam a harmonia do ser humano com a criação, cos seus semelhantes e com Deus, não é fé verdadeira. E a teologia que não se interessa pelo “reino que está próximo”, que necessita da conversão de quem crê nesse anúncio como Boa Nova, tampouco é digna desse nome. Nesse sentido, ao rememorar os 50 anos dessa obra inaugural, mais que simplesmente colocá-la de novo sob os holofotes, é necessário, como diante de todos os clássicos, relê-la, descobrindo o que a geração atual ainda não percebeu de seu horizonte de sentido.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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