Pesquisar
Close this search box.

O ato de recepção na Igreja

advanced divider

Geraldo Luiz De Mori, SJ

Quem dera todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor pusesse o seu Espírito sobre eles” (Nm 11,29)

 

Com a cerimônia do dia 27/10/2024, em Roma, encerrou-se a XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que teve como tema: “Por uma Igreja sinodal. Comunhão, participação, missão”. O Documento Final, redigido em italiano, tem sido disponibilizado aos poucos nas diversas línguas. O site oficial da CNBB divulgou a versão oficial em português no dia 14/11/2024. No dia 25/11/2025, a sala de imprensa da Santa Sé divulgou uma “Nota de Acompanhamento do Documento Final da XVI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos”, redigida pelo Papa Francisco. É importante notar que o Papa, desde o final do sínodo, havia declarado que não escreveria uma “Exortação Pós-Sinodal”, documento que os papas em geral escreviam depois do sínodo.

Muito já se falou sobre esse sínodo, tanto positivamente quanto negativamente. Alguns grupos na Igreja pensam que já está na hora de se “passar a outra coisa”. A convocação do Ano Jubilar, consagrado ao tema da Esperança, que será aberto em 24/12/2024, é para esses grupos o momento de tirar do foco as questões levantadas e definidas pelo sínodo recém-concluído. No fundo, esse tipo de visão ignora que um sínodo não é somente o processo que o preparou e que culminou na assembleia sinodal, com o discernimento e as decisões que ela tomou, sintetizadas no Documento Final. Além dessa reação, há também a de outros grupos eclesiais, muito fortes na Igreja do Brasil, que consideram que o sínodo só confirmou o que já é a experiência da Igreja do país. Entre os que pensam assim existe a tendência a tornar o termo “sinodal” uma espécie de “adjetivo verniz”, aplicado a tudo o que se faz, mas que não se abre ao novo que o sínodo trouxe. No fundo, nada vai mudar, e a “Igreja da manutenção” vai continuar fazendo o que sempre fez, ignorando a oportunidade única que lhe foi dada pelo percurso sinodal.

O “final” do “evento sinodal”, que para muitos terminou no dia 27/10/2024, não se identifica, porém, com a cerimônia de encerramento da 2ª Sessão. Nos sínodos anteriores já realizados, o Documento Final era entregue ao Papa, que depois elaborava a Exortação Pós-Sinodal, que se tornava parte de seu magistério ordinário. Francisco renunciou, porém, a elaborar uma “exortação”, e transformou o Documento Final em “Magistério ordinário do Sucessor de Pedro”, segundo a Nota do dia 25/11/2024. Nesse gesto há algo de extraordinário, com grande significado do ponto de vista eclesiológico. O Concílio Vaticano II já havia valorizado o “sensus fidei”, ou seja, o sentir dos fiéis em matéria de fé e costumes. A assembleia sinodal, composta não só de bispos, mas também de padres, diáconos, religiosos e religiosas, leigos e leigas, se torna a expressão do que Francisco chama na Nota de “nós”, com estatuto de “magistério”, ou seja, ensinamento a ser acolhido pelo conjunto do povo de Deus. Na história da Igreja, o “sensus fidei” já foi valorizado de muitas maneiras, ganhando estatuto de “magistério”, ou seja, sendo reconhecido como verdadeiro ensinamento da Igreja. Com a eclesiologia dos Concílios de Trento e do Vaticano I, porém, cada vez mais somente o que o Papa dizia ou escrevia era considerado como “autêntico” magistério da Igreja. O Vaticano II revalorizou o lugar do “sensus fidei” e ampliou a compreensão do magistério eclesial, também representado pelos ensinamentos dos bispos, sobretudo quando exerciam colegialmente a busca da vontade de Deus para certos territórios. É o caso, dentre outros, dos documentos das Conferências do CELAM, para a América Latina e dos documentos da CNBB, para o Brasil, que são reconhecidos pela maioria dos fiéis como parte do magistério da região.

Na Nota, Francisco não só diz que o Documento Final faz parte do magistério ordinário do Papa, mas que corresponde ao que ele tinha dito em 2015, no discurso por ocasião do 50º aniversário da criação da instituição dos sínodos na Igreja, a saber, que a “sinodalidade é o quadro interpretativo adequado para compreender o ministério hierárquico”. Ele lembra que ao aprovar o Documento, ele afirmou que não se trata de um texto “estritamente normativo e que sua aplicação necessitará de várias mediações”. Isso não significa, sinaliza o Papa, que o Documento Final “não comprometa desde já as Igrejas”. Pelo contrário, elas são chamadas a “implementar, em seus contextos, as indicações autorizadas contidas no Documento, através dos processos de discernimento e de decisão previstos pelo direito e pelo próprio Documento”. É necessário tempo para chegar a escolhas que envolvam toda a Igreja, sobretudo no que diz respeito aos dez temas que continuam sendo aprofundados pelos grupos que ele criou. Francisco lembra também o que ele tinha dito na Amoris laetitia, a saber, que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas com intervenções do Magistério. É necessária, diz ele, a unidade da doutrina e da práxis na Igreja, mas isso não impede a existência de diferentes modos de interpretar alguns de seus aspectos. Além disso, cada país ou região deve procurar soluções mais inculturadas, mais atentas às tradições e aos desafios locais.

Na Constituição Apostólica Episcopalis communio, publicada em 2018 pelo Papa com orientações precisas dos processos implicados em todo sínodo, além das etapas da escuta, do discernimento e de tomada de decisão, está prevista a etapa da aplicação ou recepção. É nesta etapa que a Igreja agora entra, após ter participado de muitas maneiras ao longo desses mais de três anos do caminho sinodal. O Documento Final, articulado em cinco partes, apresenta orientações importantes para essa nova etapa. As primeiras quatro partes todas possuem, no título, o termo “conversão”, que é uma dica de como se deve pensar o processo de recepção e aplicação. O Papa tinha apresentado, na Exortação Apostólica Evangelii gaudium, os quatro princípios que devem orientar o compromisso e a ação social dos fiéis. O primeiro afirma que o “tempo é superior ao espaço”, e que é necessário inaugurar processos. Sob muitos pontos de vista, ao colocar nos quatro primeiros capítulos o apelo à conversão, o Documento Final coloca-se nessa ótica, ou seja, o que foi vivido por toda a Igreja deve desencadear processos que levem à conversão. A primeira, na própria compreensão do que é a Igreja, presente na primeira parte; a segunda, nas relações que constituem o corpo eclesial, com seus diferentes carismas, vocações e ministérios, proposta na segunda parte; a terceira, nos processos, sobretudo os que têm impacto na vida e na ação da Igreja, para que ela de fato seja sacramento da unidade entre os seres humanos e deles com Deus, indicada na terceira parte; a quarta, nos vínculos, que é o que constitui a Igreja como povo de Deus, corpo de Cristo e templo do Espírito Santo, nos muitos lugares em que se encontra, apresentada na quarta parte.

O caminho sinodal proposto pela XVI Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos não se realiza por decreto nem se reduz ao percurso já realizado. É algo da ordem de um contínuo apelo a que a Igreja seja o que ela é em sua identidade: comunidade dos que creem no Cristo, formando seu corpo peregrino na terra, movido pelo Espírito Santo, ao serviço do advento do reinado de Deus num mundo marcado por tantos desafios. A tarefa da recepção não é só dos pastores, a conversão para a qual convida o Documento Final é algo a ser vivido continuamente por todos os membros do “santo povo de Deus”. Nesse sentido, o que diz Moisés aos que denunciam o fato de dois jovens fora do acampamento estarem profetizando, deve ser uma espécie de convite e guia: “Quem dera todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor pusesse o seu Espírito sobre eles” (Nm 11,29). Que a criatividade e a ousadia sejam os traços desse próximo passo na Igreja do Brasil.

Geraldo Luiz De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

...