Carlos Roberto Drawin
Um conhecido manual norte-americano de psicologia social, recentemente traduzido para o português, ilustra, através de alguns exemplos simples e concretos acerca de como as opiniões individuais são socialmente moldadas e, por isso, o ser humano deve ser considerado como um animal social (Aronson, 2023, p. 21-24). Vou me inspirar em alguns desses exemplos, mas resumindo-os e os adaptando para servir ao objetivo específico deste nosso pequeno texto. Alguns deles parecem banais e sem maior interesse, outros podem ter maiores consequências físicas, políticas e morais.
No primeiro caso, o relato aparentemente banal, diz respeito a um comerciante de uma cidadezinha do interior que, apesar de jamais ter visto um muçulmano “sabe” que eles são perigosos, antipatrióticos e, talvez, terroristas. Adaptando-o para o nosso contexto brasileiro: um bom cristão, católico ou evangélico, sem jamais ter lido um único livro na vida, “sabe” que os comunistas são inimigos da família, da pátria e da religião. De onde vem esse “saber”? E quem são os “muçulmanos” e os “comunistas”? Podemos retrucar: o que importa? Afinal de contas, cada um tem a sua opinião, todos são livres em expressá-las e, mesmo delas discordando, devemos respeitá-las. De fato, esse é um ingrediente essencial dos regimes democráticos: a diversidade de opiniões e a atitude de tolerância em relação à sua recepção e livre circulação.
No segundo caso, o relato tem consequências um pouco mais perturbadoras e refere-se a um homem jovem que entra armado numa pizzaria e atira a esmo, não fere ninguém, mas afirma à polícia que o motivo de seu comportamento foi ter “sabido” que havia escravização e abuso sexual de crianças naquele estabelecimento comercial. Um bom motivo moral, a luta contra a exploração e a pedofilia, levando a um comportamento injustificável. De onde veio o “saber” que o levou à passagem ao ato? Bem, podemos novamente ponderar, o problema não residiu em sua crença e em sua informação equivocada e sim na maneira em que elas se concretizaram. De fato, as crenças, sectárias ou tolerantes, podem produzir diferentes e heterogêneos efeitos comportamentais.
Os exemplos poderiam se multiplicar indefinidamente, alguns quase irrelevantes, outros chocantes e, até mesmo, catastróficos como, não devemos nos esquecer, o papel do antissemitismo no horror totalitário do nazismo. De qualquer forma, deixando de lado o intrincado das motivações e dos comportamentos, queremos ressaltar dois pontos básicos.
O primeiro se refere à confusão entre emoção e cognição. Nos relatos acima elencados o pretenso “saber” não provém da consciência discursiva, do elaborado diálogo consigo mesmo, da reflexão metódica e da discussão pública, mas emerge da evidência das emoções. Por que evidência? Porque as emoções, enraizadas em nossas vivências mais primárias, condicionam nossa maneira de ver o mundo e chamamos evidente aquilo que vemos. Passamos, então, ao segundo ponto a ser destacado: quando falamos em “nossa” maneira de ver, quem é o “nós”? A resposta mais imediata parece ser: o “nós” é apenas uma forma estilística do “eu” e, portanto, o “nossa” é sinônimo de “minha maneira”. Aqui vale a pena citar o filósofo francês Georges Didi-Huberman:
“a emoção não diz ‘eu’: primeiro porque, em mim, o inconsciente é bem maior, bem mais profundo e mais transversal do que o meu pobre e pequeno ‘eu’. Depois porque, ao meu redor, a sociedade, a comunidade dos homens, também é muito maior, mais profunda e mais transversal do que cada pequeno ‘eu’” (Didi-Huberman, 2016, p.30).
Há, pois, nas emoções, elementos inconscientes, quantidades de energia que não se submetem inteiramente ao nosso controle egóico e às nossas intenções mais sensatas. Quando sentimos medo, inveja, tristeza ou raiva podemos saber o que sentimos sem sabermos o seu porquê. O mais importante, no entanto, a ser sublinhado: os elementos inconscientes não se restringem apenas às profundezas de nossa individualidade, eles se originam da sedimentação de nossas interações sociais mais básicas e de nossas longínquas heranças culturais. Os exemplos acima mencionados mostram como essa proveniência das emoções não as confina ao passado distante, porque as emoções são reatualizadas e diversamente configuradas em decorrência dos contextos contemporâneos. O ódio ao “comunista”, ao “muçulmano”, ao “judeu”, enfim, ao Outro inimigo, ganha feições diversas em diferentes situações históricas, mas cumprem a mesma função: a de mascarar a complexidade e as contradições do mundo, simplificá-lo ao máximo e calar as inquietações do pensamento crítico. Por isso, podemos dizer que as emoções possuem um caráter eminentemente político e, quando são objeto de manipulação pelo poder hegemônico, tornam-se puras paixões. Muitos pensadores alertaram para a oposição entre a pura paixão (páthos), aquela passividade facilmente manipulável, e a ação consciente (práxis), aquela atividade lucidamente orientada.
Certamente a emoção deve ser diferenciada da cognição e da ação, mas, poderíamos, por outro lado, conhecer e agir de modo inteiramente desapaixonado e carente de emoção? Se assim fosse, não seríamos mais humanos, não seríamos mais espíritos encarnados, nos tornaríamos máquinas, anjos ou, pior, nos julgaríamos deuses e, então, ensina Terry Eagleton:
“o Homem se apaixonaria pelos próprios poderes ilimitados, esquecendo-se de que Deus, na doutrina da Encarnação, é mostrado como apaixonado pelo que é de carne, frágil e finito” (Eagleton, 2011, p. 25).
Não há, portanto, como eliminar a paixão em nome da ação, a emoção em nome da razão, embora seja possível e se nos impõe como um dever inegável e interminável o buscar certo equilíbrio entre as suas mais desagregadoras polarizações.
Contudo, e passando novamente a palavra a Didi-Huberman, a emoção é um impasse da linguagem, do pensamento e da ação, pois quando tomados pela emoção mais intensa, emudecemos, ficamos transtornados, desorientados e paralisados. Ele, porém, acrescenta: “um impasse se dá quando a gente não passa: é uma noção negativa” e a dialética nos mostra que não há “sim” sem “não”, não há positividade sem negatividade (Didi-Huberman, 2016, p. 21-22). A imagem da passagem vem a calhar, porque toda passagem parece implicar um “entre”, o entre dois obstáculos, limites ou estreitezas. A humanidade não avança num espaço aberto e desimpedido, como se fôssemos os soberanos da história, que, aliás, não cessa de nos testemunhar os perigos das paixões desabridas. Avançamos, recuamos, damos voltas, desviamos e nos perdemos e, às vezes, nos esgueirando por passagens estreitas e com não poucos ferimentos, nos deparamos com belas e inesperadas paisagens. Esse é o caráter espectral das emoções, porque elas realmente nos rondam como um espectro, um fantasma ameaçador, mas, a etimologia latina da palavra “espectro” nos insinua outros sentidos, o do fantasiar, imaginar e contemplar, o de um ver criativo descortinando o para além do nosso Eu pobre e efêmero e o para além das misérias de nosso quotidiano
Carlos Roberto Drawin é professor emérito do departamento de Filosofia da FAJE
Referências:
ARONSON, Elliot e ARONSON, Joshua. O animal social São Paulo: Editora Goya, 2023.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção? São Paulo, Editora 34, 2016.
EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2011.