“Dai graças em todas as circunstâncias, pois esta é a vontade de Deus a vosso respeito em Cristo Jesus” (1Tes 5,18)
Geraldo De Mori SJ
2021 vai terminando e 2022 já desponta no horizonte. Ao se concluir mais um ano, políticos, economistas, sociólogos e grande parte da mídia gostam de fazer balanços sobre o ano que se acaba e tecer prognósticos sobre o ano que se inicia. Sem dúvida alguma, 2021 será, por um lado, lembrado pelo número astronômico de mortos pela pandemia e, por outro, pelas esperanças trazidas pelo processo de vacinação em massa, que parecia prenunciar o fim da grande tragédia sanitária que foi o contágio pelo Sarx cov 2 e as consequências que deixou em termos econômicos, sociais e existenciais. Os últimos dias do ano indicam, contudo, que uma nova variante, Ômicron, embora menos letal, é mais contagiosa, como revela o número impressionante de infectados. É como se o mundo, ao fechar as portas de mais um ano e abrir as de um outro, mais que abrir-se à esperança, tivesse que permanecer numa espécie de túnel sem saída, tendo que descobrir novas formas de convivência com um vírus que teima em reinventar-se, derrotando e humilhando governos, autoridades sanitárias e a razão técnico-científica.
A conclusão de mais um ano, ainda muito marcado pelos impactos da pandemia da Covid-19, levanta não só questões existenciais, sanitárias e políticas, mas também civilizatórias. Durante alguns séculos, motivadas sobretudo por uma confiança na razão, as culturas marcadas pelo pensamento ocidental acreditavam que a humanidade avançava em termos de domínio sobre o mundo e sobre as próprias “loucuras” da razão. O período iluminista exacerbou essa perspectiva, levando a pensar na vitória da liberdade e da razão sobre o caos e o destino. A política do isolamento social, como forma mais eficaz de conter o avanço do contágio, embora questionada pelos que defendiam que a economia não podia parar, tornou-se o caminho adotado por grande parte dos países no combate ao contágio, enquanto não fosse inventada a vacina. A aceleração de sua criação, com início de testagem e aplicação às populações mais idosas, ainda em 2020, apontava para uma esperança de que o vírus seria vencido em 2021. Porém, as resistências de grupos que não aceitam ser vacinados, e a ausência de uma política dos países ricos com relação à imunização das populações do Sul global, tornaram-se o terreno favorável ao surgimento de novas variantes do vírus, mais contagiosas, de modo que o final de 2021, mais que apontar à vitória da razão técnico-científica sobre o vírus, leve à transformação da pandemia da Covid-19 em endemia.
Bárbara Buril, num texto muito lúcido, escrito em 2020, afirmava que “nenhuma forma de sofrimento deveria ser vista em chave pedagógica”. Segundo ela, “por mais que possamos aprender algo com as catástrofes, trata-se apenas de uma possibilidade de aprendizado” (BURIL, 2020, p. 30). Ela recorda muitas das grandes tragédias da história da humanidade (escravidão, totalitarismos, genocídios), que não impediram que esses fenômenos continuassem a se repetir, mesmo em sociedades que se consideravam “modernas” ou “civilizadas”. O caso do Brasil nesses últimos anos, que englobam também os da pandemia, é emblemático. É difícil de acreditar que pessoas razoáveis possam admitir e aceitar não só os propósitos verbais do mandatário da nação, mas também as decisões que tomou, não só com relação ao enfrentamento da pandemia, mas também em termos de políticas públicas, grande parte das quais fruto de um longo trabalho de décadas de lutas populares, boa parte das quais sendo simplesmente desconstruídas, com riscos de se produzir verdadeiros “apagões” em setores essenciais que garantem a continuidade de uma sociedade e de uma nação. E o mais trágico é que com apoio de uma parcela ainda importante da população, formada, sobretudo, por representantes da elite, em princípio, segundo os valores da civilidade.
Toda leitura teológica da realidade, além da lucidez em descobrir todo tipo de desmando que avilta, diminui e humilha grupos ou parcelas inteiras da população, deve também ajudar a desvelar, nas “más traçadas linhas da história”, a passagem de Deus. A fé cristã, tal qual a entende e tenta viver boa parte dos que se dizem católicos, é fortemente marcada pelo olhar de Jesus sobre seu destino, aparentemente fracassado, celebrado por ele na última ceia. O fracasso é assinalado de diversas formas nos relatos evangélicos. Ele se dá primeiramente na trama de seus inimigos, que não só decidem sua morte, mas conseguem corromper um de seus amigos, levando-o a entregá-lo. Ela se dá também na incompreensão das multidões, que apesar de descobrirem nele um profeta e enviado de Deus, tal como o aclamaram na entrada triunfal em Jerusalém, deixam-se enganar pelas autoridades religiosas, que as fazem preferir o culpado ao inocente. A derrota aparece mais ainda na condenação e no caminho que o levam à cruz, destino reservado a revoltosos e bandidos. No meio de todos esses fracassos, Jesus não só dá um sentido ao que será sua morte, vista por ele como um “bem” através do qual a humanidade será salva, mas, por meio de um gesto profético, o dom do pão repartido e do vinho distribuído, após serem abençoados e “eucaristizados”, ele mostra que o amor tem o poder de transfigurar tudo. Sua vida não lhe é tirada, mas entregue. Mais que maldição, seu corpo torturado e seu sangue derramado, figurados no pão e no vinho partidos e entregues, após bênção e ação de graças, conseguem transformar o abjeto em sinal de salvação, introduzindo os que vivem como ele numa “nova e eterna aliança”.
Se o olhar “eulógico” (que abençoa) e eucarístico (que dá graças) de Jesus é o lugar a partir do qual ler teologicamente a realidade, então um verdadeiro “balanço” de 2021 não pode ignorar o que de bênção e ação de graças tirar de tudo o que marcou o mundo no ano que termina. As comemorações natalinas chamam a ver a presença da eulogia e da eucaristia em eventos aparentemente insignificantes: um casal grávido de um bebê, que chega a uma pequena cidade e não encontra lugar para que seu filho nasça com um mínimo de dignidade, sendo obrigado a se abrigar junto aos animais do campo. Os primeiros olhos “teológicos” desse evento, o dos pastores, é aberto por “anjos”, enviados de Deus para que possam descobrir no meio deles a presença divina.
Muitos pastores e pastoras tiveram seus olhos abertos por anjos ao longo dessa dura travessia que foi 2021. Eles e elas conseguiram reconhecer a passagem de Deus, sob muitas formas de solidariedade, dedicação, serviço gratuito, partilha, presentes em tantos gestos, direta ou indiretamente, realizados como enfrentamento da pandemia. Graças a esses olhos e a esses gestos, muitos outros também se abriram e se colocaram em rota, com outras formas de presença de esperança, que fizeram com que, apesar de tudo, fosse possível ainda abençoar e dar graças por tudo, mesmo por aquilo que aparentemente só trouxe sofrimento, dor e desprezo pela vida dos inocentes. A eulogia e a eucaristia não canonizam o mal nem o justificam, mas mostram que ele, uma vez atravessado, pode ser vencido, sobretudo se enfrentado com o amor mais forte que a morte e mais forte que a violência e a maldade, porque é olhar gratuito e torna grato.
Referência
BURIL, Bárbara. A pandemia e o individualismo que nunca existiu. In REICH, E.; BORGES, M. L.; XAVIER, R. C. Reflexões sobre uma pandemia. Florianópolis: Nefiponline, 2020, p. 30-34.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE